terça-feira, 6 de maio de 2014

Transtornos Mentais


Ficção ou realidade? 

Outro dia me perguntaram:
Isso que você escreve é de verdade? Você é doida mesmo?
Esboço um sorriso até meigo. E penso na resposta. Que resposta? O que responder?
Sou doida ( psicótica), sei lá. Até um dia desses não era. Talvez você também não seja até hoje.
Os médicos dizem que sim.
Os psicólogos também.
O meu marido ( para sua  surpresa e de muitos  "tenho" um) também acredita.
O psiquiatra me disse semana passada que existem vários tipos de adoecimento mental.
O que é adoecimento mental?
Fiquei pensando nessa frase. Adoecimento mental. Acredito que durante meu tratamento, essa pergunta sempre me perseguiu. O que é essa doença mental? Porque sou diferente dos outros que me acompanham no espaço onde faço tratamento? Porque sinto tanta inveja dos outros psicóticos que ainda surtam ou tem algum tipo de alucinação?
Já é antiga a afirmação: “de médico e de louco todos temos um pouco”.
Todos “podemos” afirmar quem é doente mental, mas não estamos imunes à doença mental.
Na maioria das vezes, as pessoas  assumem-se como “médicos” (doentes são os outros) ou em parte “loucos” - mas no bom sentido, porque loucos, verdadeiramente, são sempre os outros.
Ou seja, loucos do bem, a loucura boa. Será que existe? 
 Esse texto surgiu das minhas conversas comigo mesma e com as(os) muitos de mim que povoam a minha mente. Surgiu também das conversas com minha psiquiatra que acompanhou todo o meu processo, com uma escuta carinhosamente  singular.
É como pensarmos que os “normais” são como nós e os doentes são os diferentes. Nada de mais errado. Mas fica-nos o pseudo-bem-estar de que, excluindo os outros, excluímos de nós a doença mental.
Penso que assim começou e continua o estigma da doença mental.
A história da doença mental revela que, desde cedo, as pessoas com comportamentos e atitudes desajustadas da sociedade e com situações extremas de doença fossem segregadas e remetidos para prisões onde eram contidas, colocando “a salvo” a sociedade (e não os doentes). Só muito posteriormente estes viriam a ser alvo de atenção e intervenção, surgindo neste contexto prisional os primeiros tratamentos médicos psiquiátricos.
O termo doença mental tem, infelizmente, ainda um sentido pejorativo, por ignorância e sentimento de ameaça e vulnerabilidade das pessoas. A imagem e conceito de doença são ainda associados a pessoas violentas, agressivas, incapazes, “tolinhas” ou que só cometem loucuras. Nada de mais errado. A doença mental é, atualmente, extremamente comum.
A doença mental não deve ser confundida com a quebra de normas ou funcionamentos sociais, de sentimentos, de crenças ou valores religiosos ou morais que divirjam deste ou daquele grupo, sociedade ou cultura. Percebo que algumas pessoas são mal-educadas mesmo, acham que em nome da autenticidade podem desrespeitar as regras e os valores sociais.
Há ainda um grande desconhecimento da evolução do diagnóstico e tratamento das doenças mentais entre os profissionais de saúde (não ligados à saúde mental) e na sociedade, o que contribui para a estigmatização da doença mental.
Compete aos técnicos de saúde mental estudar, avaliar, tratar e refletir, para que se consiga evoluir mais e intervir cada vez melhor, bem como informar e alertar a sociedade para desmistificar a doença mental. Mas este aspeto também se aplica a outras doenças que, de igual modo, tiveram que ultrapassar muitas barreiras. O câncer, por exemplo, foi alvo de grandes campanhas que promoveram o diagnóstico precoce, apesar do conhecimento científico incompleto e da complexidade e grau de eficácia insuficiente dos tratamentos, que contribuíram para uma grande evolução nessa área.
Ainda hoje se verifica que, por motivo de doença mental, a pessoa pode necessitar de baixa ou estar incapaz de exercer as suas tarefas diárias e ser mal vista pela sociedade.
Ou seja, além de estar doente, tem ainda de enfrentar ou refugiar-se da atitude de ignorância dos outros.
A doença mental é hoje definida e estudada por profissionais com métodos e rigor científicos.
O desenvolvimento de critérios de diagnóstico de doença mental dos manuais da Associação Americana de Psiquiatria ou da Organização Mundial de Saúde vieram definir e orientar, do ponto de vista clínico, uma uniformidade de conceitos sobre o que é ou não a doença mental.
A conotação da doença mental com aspetos pessoais e sociais negativos é algo que vem do passado longínquo e se projeta nos dias de hoje, sem qualquer correspondência com a realidade atual.
Ao longo dos tempos, o Homem sempre revelou dificuldade em compreender a doença mental, mas com a evolução científica e a maior oferta de serviços de tratamento da doença mental, atualmente a pessoa em risco de doença ou com doença mental ou que sente algum mal-estar ou sofrimento emocional procura muito mais facilmente ajuda, apoio e tratamento.
O modelo estritamente biomédico considera que a doença mental é equiparável a outras doenças, com um substrato físico, associado a alterações cerebrais, nomeadamente, de neurotransmissores, receptores neuronais que provocam sintomas e são tratados com medicação.
Claro que isto é uma realidade, mas não se pode reduzir a doença e o sofrimento mental da pessoa apenas ao biológico. A dimensão da doença mental está muito para além do substrato biológico que está presente em todas as emoções e comportamentos, quer sejam patológicos ou não. A doença mental é muito mais complexa e, por isso, coloca dificuldades ao técnico e a quem dela sofre. Esta complexidade, apesar de ser difícil de compreender, não pode ser desvalorizada ou negada e, por isso, desviada para aspetos interpessoais, sociais, morais e culturais.
O termo doença mental tem, ao longo dos tempos, acentuado e contribuído também para a dualidade mental/físico, o que não é realidade. Nem as doenças físicas são só físicas, nem as mentais são só mentais. Ambas se manifestam numa pessoa que é simultaneamente corpo e mente.
As doenças mentais não são problemas da vida, são um problema na vida do doente.
As pessoas não adoecem porque querem ou escolheram ser doentes. Também não melhoram apenas com a vontade e desejo pessoal. A pessoa com doença mental necessita de tratamento como qualquer outra pessoa que sofra de diabetes, câncer ou hipertensão arterial.
A doença mental deve ser encarada como algo que funciona mal no nosso cérebro e que provoca a doença, tal como noutras doenças orgânicas ou como resposta a circunstâncias anormais e, neste caso, constitui uma disfunção psicológica.
Em qualquer dos casos, em que uma ou mais variáveis (disfunção cerebral ou circunstâncias anormais) estão presentes temos uma doença ou risco de a ter. Caso as duas variáveis estejam bem teremos provavelmente um estado de saúde mental. Mas nem sempre.
Temos também de inserir a doença mental no domínio psicológico, em que a pessoa sem lesão ou sem substrato físico prévio alterado, em determinadas situações de crescimento psicológico ou acontecimentos de vida pode adoecer mentalmente.
A pessoa pode possuir défices ou mecanismos psicológicos prévios que, mesmo em circunstâncias aparentemente “normais” , evolui para a doença mental.
Claro que as condições físicas e psicológicas são indissociáveis e a importância de uma ou de outra muda de doente para doente, não existindo uma sem a outra.
A doença mental não é um desvio do comportamento ou atitude social, mas pode implicar ou desencadear alterações do comportamento social ou cumprimento de normas sociais.
A doença mental implica sempre uma disfunção no indivíduo e não apenas uma diferença. OU melhor é uma disfunção que nos torna diferentes, mesmo quando somos funcionais ( o que é ser funcional? Acho que o mundo é dos funcionais. Isso é uma divagação. Fica para outra hora. Humm, penso que as divagações tomaram o lugar das alucinações).
Uma coisa são as normas sociais, isto é, situações em que as pessoas infrinjam ou não cumpram ou não concordem com determinados valores, outra coisa é uma perturbação do comportamento ou violação dessas regras por doença mental.
Muitos dos problemas que atualmente diminuem a saúde mental das pessoas são relevantes em termos de disfunção psicológica, mas não em grau suficiente para que possam ser considerados doença mental no sentido mais estrito do termo, em que o componente biológico é determinante ou clinicamente significativo, mas afetam a qualidade de vida das pessoas e colocam-nas em risco de adoecerem.
A doença mental implica a presença de um conjunto de sinais ou sintomas clinicamente significativos e que não são uma resposta comum, adequada, inserida no contexto cultural e social em que a pessoa vive, mas resultado de uma disfunção psicológica, biológica e social.
São critérios da doença mental mal-estar ou déficit funcional clinicamente significativo, um impacto e prejuízo na vida da pessoa doente, ao nível pessoal, social, ocupacional ou qualquer outra área importante da vida da pessoa, deteriorar as capacidades ou provocar uma mudança inequívoca no funcionamento da pessoa.
Outro dos critérios utilizados pelos médicos é a duração e persistência dos sintomas.
Não é demais salientar a diferença que existe entre doença mental e as diferentes emoções, comportamentos, atitudes, reações das pessoas enquanto indivíduos inseridos nos mais variados grupos, contextos ou cultura. Para alguns estar louco é rasgar dinheiro e passar merda na cara.
Sinto decepcionar você, mas não é bem assim. Nunca encontrei nenhum psicótico, mesmo em surto severo, que fizesse isso. Mais um mito a ser quebrado.
As causas das doenças mentais são múltiplas, diferindo de doente para doente.
Um dos aspetos característicos da doença mental é a heterogeneidade dos casos. Podemos ter uma psicose em pessoas muito diferentes, daí a grande complexidade das apresentações dos sintomas  e dos problemas associados a cada pessoa. As pessoas sofrem de doença mental e não são “a doença mental”. Por isso, devemos dizer que a pessoa tem uma depressão e está deprimida e não que é um deprimido.
Outro aspeto muito relevante é o fato de, para o mesmo diagnóstico, termos pessoas com manutenção da capacidade funcional, outras com incapacidade funcional parcial ou total e, dentro da mesma pessoa e diagnóstico, podemos ter alterações da capacidade funcional conforme o momento da avaliação.
Pois é,  sou psicótica com desempenho funcional bom ou ótimo.
Será que tudo isso é ficção? Realidade?
Caro leitor ( se é que você existe) deixo você com a possibilidade da dúvida e o poder da escolha.

                                                                                                  A loucura nossa de cada dia



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